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Rosiska Darcy de Oliveira: 'Vivemos em um mundo que consome o tempo das pessoas'
 
Entre os temas preferidos da jornalista, articulista, doutora em educação e escritora está a relação que as pessoas estabelecem com o tempo, o trabalho e a vida privada. Confira a entrevista.
 
28 de janeiro de 2008
por Andréa Estevão
 

Rosiska Darcy de Oliveira

Rosiska é jornalista, articulista, doutora em educação e escritora. Entre seus livros estão “A natureza do escorpião” (Rocco, 2006) e “Reengenharia do tempo” (Rocco, 2003), nos quais faz um diagnóstico original da sociedade contemporânea, e uma crítica à colocação em segundo plano da vida privada, da arte, do tempo livre e da capacidade de sonhar. Fundou e preside o Centro de Liderança da Mulher (CELIM). Trabalhou em projetos educacionais com dois grandes pensadores brasileiros da área, Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Presidiu o Conselho Nacional de Direitos da Mulher, no governo Fernando Henrique Cardoso, e ministra cursos livres no Pólo de Pensamento Contemporâneo, no Rio de Janeiro.

Em tempos de educação continuada, o principal sentido da educação é a preparação para o exercício da profissão?

Rosiska Darcy de Oliveira - O maior risco para a educação é ser tomada num sentido estrito de formação técnica, de formação profissional. Quando eu utilizo a palavra educação, eu me refiro a um processo que se dá ao longo da vida inteira e que é um processo que envolve um conjunto de experiências. Entre as quais eu coloco a técnica num lugar importante, que não desmereço absolutamente, mas que está longe de esgotar o sentido da palavra educação. Educação eu utilizo no sentido de formação, muito mais do que no sentido de informação. Formação é aquele conjunto de experiências pelas quais passamos, ao longo da vida. Experiências sobre as quais somos capazes de refletir, e que, em refletindo sobre elas, elas se tornam um capital próprio. Você passa então a ser formado.

Educação é o que te dá forma. Cada um vai tomando uma forma que é diferente da de outra pessoa, a qual teve outro tipo experiência. Aqueles que pensam a educação devem pensar em oferecer àqueles com quem trabalham uma gama mais larga possível de experiências que sejam formadoras. Sobretudo, creio que educação deve ser uma forma de estímulo para que cada um busque mais educação. A educação é tanto mais satisfatória e eficiente quanto é capaz de provocar no aluno o desejo de se formar mais, o desejo de ir buscar por si mesmo: mais experiências, mais informação, mais formação, mais abertura de horizontes. Enfim, educar é alargar o campo do possível.

Você estudou no Instituto de Educação, se graduou em direito e fez doutorado em educação. O que motivou suas escolhas no percurso para sua formação profissional?

Eu tive um percurso bastante acidentado. Fui de uma geração em que as mulheres eram encaminhadas para o mundo da educação, para se tornarem professoras. Mas eu já estava em processo de ruptura com essa imagem feminina, nesse momento. Aos 18 anos, escolhi ingressar na faculdade de direito. Uma escolha de carreira que era, na época, considerada masculina. De fato, na faculdade, nós éramos impressionantemente minoritárias. Comecei a formação em direito, mas já apareceu aí, muito claramente, minha vocação de escritora. A vocação de escritora me encaminha para os jornais. Então, eu me tornei jornalista. Minha carreira de jornalista foi interrompida pelo exílio. Eu me opus definitivamente à ditadura militar no país, e paguei o preço do exílio. Nos 15 anos em que estive fora do país, tive que refazer a minha carreira profissional, porque eu tinha duas profissões – eu era advogada e era jornalista – e nenhuma delas me servia fora do Brasil: a língua e as leis eram diferentes. Não eram, portanto, imediatamente conversíveis em possibilidade de trabalho.

Foi aí que refiz meu caminho na educação. Eu o refiz, motivada por um encontro que foi decisivo na minha vida, o encontro com o professor Paulo Freire (1921-1997), que também estava exilado, em Genebra. Foi através do contato com ele que eu me religuei ao mundo da educação. A visão dele sobre educação era de uma abertura muito grande, muito promissora, bem diferente daquela desinteressante e tradicional que eu tinha conhecido. A amizade e o trabalho com o Paulo foram experiências formadoras. Eu trabalhei 15 anos com ele. Fui assistente dele, antes de me tornar professora da universidade. Fundamos o IDAC (Instituto de Ação Cultural) juntos.

Outro aspecto importante do meu percurso é que cheguei na Europa, em 1969, imediatamente após maio de 1968. Deparei-me com a mudança de todos os parâmetros aos quais estava habituada até então. E, fundamentalmente, o mais importante, a eclosão, imediatamente após maio de 1968, do movimento feminista, que eu prefiro chamar de movimento de mulheres. O movimento de mulheres, que eclodiu naquele momento, e que eu fui, certamente, uma das fundadoras, era um movimento de revisão das relações de gênero, das relações homem-mulher. Era, enfim, um movimento cuja motivação era a liberdade. Eu diria que todas as escolhas que fiz foram escolhas pela liberdade, escolhas de buscar alargar o campo do meu possível, de não aceitar as restrições que eram impostas.

Na minha geração, quando você nascia, homem ou mulher, você já encontrava, impressa no espelho, a imagem que iria ter. A imagem já estava lá desenhada, você tinha que encaixar naquela imagem. Eu não queria me encaixar e não me encaixei. Acho que a minha geração teve o privilégio de ter provavelmente protagonizado a única revolução do século 20 que deu certo, a que representou a ruptura de um paradigma milenar, que mudou as relações humanas. Foi isso que me encaminhou para os estudos que eu fiz e para os livros que eu escrevi sobre a causa das mulheres, nessa fase mais militante da minha vida. Escrever esses livros me abriu, outra vez, o caminho da escrita, o caminho dos livros. Eu passei, então a escrever sobre o que eu queria.

Poderia nos falar um pouco sobre o trabalho do Centro de Liderança da Mulher?

O CELIM é um centro de formação de lideranças femininas. Fui presidente do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Nessa função, andando pelo Brasil inteiro, constatei que todos os projetos que davam certo, que tinham começo, meio e fim, eram liderados por mulheres. A afirmação de que as mulheres não participam muito da sociedade não é verdadeira. As mulheres não estão no poder ou não têm o poder, entendido como o poder de mandar, mas elas têm o poder de fazer. E elas fazem. Costumo dizer brincando que se um marciano chegasse na Terra e, por um golpe de mágica, paralisasse as mulheres, o mundo cairia. Estou absolutamente convencida disso, no Brasil, sobretudo. Por isso mesmo, apostei na formação de lideranças femininas com duplo objetivo: primeiro, de abrir, alargar o campo do possível para as mulheres, segundo, de alargar o campo do possível para o Brasil. Porque entendia e entendo que de um golpe só, a sociedade fazia mal às mulheres porque impedia a elas de se desenvolverem, e fazia mal a si mesma porque impedia que elas trouxessem a contribuição que tinham para trazer. Foi baseado nesse duplo objetivo que eu resolvi fundar o Centro de Liderança da Mulher.

Você considera que as novas gerações de mulheres ainda precisam desse suporte para afirmar suas lideranças?

Certamente, basta ver as estatísticas. A sociedade brasileira é muito retrógrada, ainda. Basta ver as questões de representação política, as questões de remuneração, de salário, de posições de poder, de poder no sentido executivo. Ainda há imensas discriminações nesse plano. Em vários níveis ainda há resquícios desse mundo velho.

No seu livro “Reengenharia do tempo” você expõe a necessidade de conseguir um tempo para a vida privada, e isso para mulheres e homens. É possível organizar de forma diferente o tempo do trabalho?

Hoje existe o teletrabalho, o trabalho compartido, existem as semanas comprimidas, as semanas alargadas, banco de horas de trabalho, ou seja, um mundo de concepções possíveis do que seja o trabalho. São muitas possibilidades, todas apoiadas na existência de uma tecnologia que não exige presença dentro do escritório, durante oito horas. Essas mudanças têm relação com a tecnologia, e, também, com a mudança do estatuto das mulheres na sociedade. O fato de a mulher não poder desfrutar do regime de trabalho que essa tecnologia possibilita é um exemplo de que ainda está prejudicada pela não aceitação de questões problemáticas, que precisam ser elaboradas.

Mas a tecnologia também ajuda a estender o tempo do trabalho, pois é mais fácil ser contatado em qualquer lugar e hora. Além disso, o mercado exige dedicação cada vez maior por parte do profissional, que precisa se reciclar, ir a congressos, fazer horas extras. Como resolver esse impasse?

Há um dado que é irremovível: o dia tem 24 horas. Isso é um teto, isso não vai mudar. O segundo teto que é preciso reconhecer é que o trabalho não é a vida inteira das pessoas. Há um livro importante que foi publicado no Estados Unidos que diz que a maior rival de uma multinacional com base nos EUA não é uma outra multinacional, mas a família dos seus funcionários. Essa maneira de ver as coisas é perversa. É preciso reconhecer que o dia tem 24 horas, que as pessoas têm laços afetivos, e que se não há condições de manutenção desses laços afetivos as perdas para a sociedade são extraordinárias. As empresas não podem ser responsáveis por essas perdas. Ao contrário, as empresas, que têm cada vez mais anunciado sua responsabilidade social, não podem entendê-la apenas como o ato de adotar uma praça ou financiar uma orquestra. Não é bem isso. É preciso que as empresas entendam, primeiro, que elas têm responsabilidade ampla nas sociedades nas quais estão inseridas, segundo, que seus funcionários são cidadãos dessa sociedade. Então, há necessidade de que eles tenham tempo para gerir sua vida privada, também.

Há congressos, há necessidade, algumas vezes, que se fique mais tempo no trabalho? É possível que em certos dias seja assim. É por isso que um sistema de banco de horas é muito útil. Há uma flexibilização possível. O perigo da flexibilização é que ela só se flexibilize no sentido e nos termos da necessidade da empresa, e não na do indivíduo. Mas um balanço correto, um acordo correto de interesses em torno disso, permite uma reengenharia do tempo. E permite, ainda, que o funcionário trabalhe com satisfação e seja produtivo. Há estudos importantes, feitos pela Universidade de Boston, que mostram que o funcionário trabalhando com a cabeça livre de preocupações pode trabalhar muito menos horas porque ele será muito mais produtivo. Acho que nós precisamos acabar com a mentalidade de pendurar o paletó, psiquicamente. Fingir que está ali, mas estar com a cabeça em outro lugar. É preciso modernizar. É preciso adaptar as relações de trabalho, as relações de emprego, não só às necessidades do mercado, mas às necessidades da sociedade. E as necessidades da sociedade significam as necessidades das famílias e dos indivíduos. As necessidades do mercado não podem ser a única lei que gere o conjunto sociedade. O mercado é uma parte da sociedade, não é a sociedade toda.

Você concorda com a idéia do sociólogo italiano Domenico de Masi de que o ócio é importante para a criatividade?

Sim, concordo. Eu só não usaria a palavra ócio, prefiro a expressão tempo livre. Eu acho que o tempo livre, o tempo não comprometido com nenhuma obrigação, é essencial para a criatividade. Digo mais, dificilmente alguém consegue ser criativo sem isso. Vejo com muita angústia a infância de hoje que tem uma agenda, que é ocupada de manhã à noite com aulas. Essas crianças brincam muito pouco de maneira espontânea. Elas têm brinquedos orientados. Deu-se uma transformação de todos os espaços da vida em alguma coisa instrumental. O que a infância tinha de mais extraordinário, criador e imaginativo, era exatamente a possibilidade de seus tempos livres: tempo para olhar o céu e observar a nuvem passar, imaginando mil coisas a partir das formas que as nuvens iam tomando. É isso que desenvolve a imaginação na criança, e, não necessariamente, estar constantemente sob o assédio de coisas pra fazer. Há uma vida espontânea que se cria quando você tem tempo livre. É a mesma coisa com o adulto. Quanto o adulto tem tempo livre ele sonha, ele devaneia. Qual o tempo do sonho e do devaneio, hoje? O sonho e o devaneio estão sem prestígio nenhum. Isso é muito problemático, porque a sociedade vai ficando sem imaginação.

Você fala em seus livros que há uma crise provocada pelo individualismo, que as pessoas estão muito sozinhas. O jovem que está começando a vida profissional hoje ele segue por esse mesmo caminho, ou há chances de que ele enverede por um caminho diferente do dos seus pais?

Tenho esperança de que eles enveredem por um outro caminho. Isso baseado numa experiência que aconteceu na França. Recentemente, uma revista francesa, cujo título é “Autrement”, fez uma pesquisa com os jovens no momento do primeiro emprego, perguntando qual a principal qualidade que buscavam nesse emprego. A resposta foi “tempo livre para viver a minha vida”. Eu acho isso muito interessante porque se essa pergunta tivesse sido feita há 20 anos, provavelmente a resposta teria sido “um bom salário”. Teria-se pensado, antes de tudo, no dinheiro. Essa resposta que os jovens deram é interessante, abre perspectivas porque é como se estivesse voltando à tona a consciência da felicidade como motivação para a vida. De uns anos pra cá, acho que a juventude tem sido massacrada com idéia de que sucesso é dinheiro, sucesso é salário alto, que sucesso é posição alta, quando, na verdade, dinheiro é um meio, dinheiro nunca foi nem deveria ser um fim. Mas a mentalidade de que o dinheiro deva ser o objetivo final da vida acaba subtraindo o verdadeiro fim que é o bem-estar e a felicidade. Quando alguém diz “o que eu procuro é um espaço para ser feliz, para levar a minha vida como eu quero”, eu acho isso alvissareiro, acho uma notícia promissora. Espero que isso vá progressivamente entrando no espírito dos jovens. Acho também que é uma geração que está chegando à juventude e vê os pais estressadíssimos, que vê os pais ganhando um dinheiro que não chegam a gastar. Tenho amigos, na faixa dos 40 anos, que têm dinheiro para comprar aparelhagens caríssimas, sofisticadíssimas, de home theater, por exemplo, mas que não têm tempo, nunca, de sentar para ver um filme. Essa situação traduz os paradoxos que o jovem inteligente, que percebe isso acontecendo dentro de casa e se diz: “eu não quero essa vida pra mim, tem alguma coisa profundamente errada dentro disso”. Talvez ele perceba que o tempo é a maior riqueza que uma pessoa pode ter. Porque o tempo a morte não vende. O tempo que você perdeu, não vai poder comprar mais, nem com todo o dinheiro do mundo.

É nesse sentido que você diz que as contradições e injustiças que acontecem no mundo, hoje, que elas trazem o seu próprio antídoto?

Eu digo que estamos vivendo numa sociedade que tem a natureza do escorpião. Isso no sentido da fábula, ou seja, vivemos num mundo que prefere se suicidar a renunciar a sua própria crueldade. Esse mundo afunda. Um mundo que destrói o seu habitat, que cria desigualdades de tal ordem que essa desigualdade se volta contra si em forma assassina, violenta, um mundo que consome o tempo das pessoas, porque corrói a vida das pessoas, tirando delas a liberdade de viver, que anula mesmo a idéia de liberdade e felicidade. Em nome de quê? Em nome do lucro? Em nome do dinheiro? É preciso repensar. Eu insisto muito nessa palavra “felicidade”. Acho que se fala pouquíssimo de felicidade. É como se fosse utopia, e que não se deve falar de utopias. A grande derrota ideológica será aceitar que de fato a felicidade não é o objetivo da vida, que de fato não se deve ter utopias. Porque utopia é entendida como aquilo que deveríamos estar fazendo e não estamos. O sonho, o projeto, a esperança são idéias fundamentais. Se passarmos uma peneira em todos os textos que eu escrevi na vida, a palavra que vai mais vai ser peneirada é esperança. Eu não consigo imaginar que alguém viva sem isso. As pessoas vivem dos seus sonhos, vivem da sua esperança. Toda e qualquer ideologia ou suposto bom senso que é um péssimo senso, na verdade é um pobre senso, que faz com que você desacredite e caia num princípio de realidade, que é princípio de uma certa realidade. Mas realidade, cada um tem a sua. Eu não me conformo com isso. Vou na contramão dessas idéias.

O que seria então o antídoto para esses males?

O antídoto é justamente recuperar o que está se perdendo. Onde se encontra felicidade, na verdade? Nas relações afetivas, entendidas como amores, amizades, relações familiares, nos sonhos realizados, nos projetos em que você investe a vida, na arte. Onde é que a gente vai se divertir? No teatro, no cinema, num show. Essas coisas não são secundárias na vida. Elas são constitutivas. Elas são essenciais – um livro que se lê, a beleza do mundo, essas coisas têm que ser recuperadas. Elas não são votos piedosos de algum inocente. Pelo contrário, inocente é quem está se deixando formar ou conformar com a perda de tudo isso. Este que abre mão é um inocente útil a um sistema que é perverso, que é macabro, que elimina essas margens de liberdade.

Matéria produzida para o site Bradesco Universitários em 3/09/2007.

 
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