Caco Barcellos é hoje um dos repórteres mais conhecidos do país, e não só por sua atuação na TV Globo, a emissora líder de audiência em todo o território nacional. Gaúcho, Barcellos tem quase 30 anos de profissão, com passagem por vários vários jornais e revistas, como Veja e Isto É. Nessa entrevista, ele fala sobre o que observa da profissão nos dias de hoje, a questão ética, sempre em voga, e as mudanças provocadas pelas novas mídias e tecnologias. Leia, a seguir:
Observamos hoje as redações encolhendo, muitos jovens jornalistas recém-formados não terão a oportunidade de trabalhar na grande imprensa e vão encontrar trabalho provavelmente em pequenas publicações, em assessorias de comunicação ou em sites. A instituição imprensa, aquela que fiscaliza o poder, pode estar se enfraquecendo, ou, pelo menos, perdendo qualidade?
Caco Barcellos – Me chama bastante atenção essa movimentação. Não sei se a imprensa está perdendo a qualidade ou se está havendo realmente uma grande transformação com o advento das novas tecnologias, como a internet. É uma mudança decorrente dessas transformações tecnológicas. Eu acho que as gerações hoje são mais bem preparadas do que as do passado. É gente que fala três, quatro línguas, e que, evidentemente, fez as melhores escolas, teve as melhores médias durante o período de formação universitária. Mas tem uma base provavelmente muito desinformada, despreparada, porque as escolas, as universidades, são muito ruins em sua maioria. Passei recentemente pela Suíça e me chamou a atenção o fato de eles, nesse momento, terem proibido a faculdade de jornalismo. Você não pode fazer jornalismo na Suíça, e sabe por quê? Porque não há vagas no mercado. Como a sociedade vai produzir profissionais se não há vagas? Tem que morrer alguém para entrar um novo.
É uma visão mais social do ensino universitário...
Exatamente. E eles analisam o mercado primeiro. Onde há necessidade de profissionais? Precisamos de engenheiros civis? Vamos lá produzi-los. E estimular profissionais que trabalham nessa área. Acho que a gente está produzindo jornalistas demais, e mercado de menos. Os empresários evidentemente estão se valendo disso, para baratear o custo da mão-de-obra. Com essa oferta absurda, não sei quantos são os milhares de formados todos os anos, mas sei que as vagas que surgem não são milhares.
A geração mais velha costuma dizer que não se faz jornalismo como antigamente, que os novos profissionais não sabem escrever ou apurar. Na sua opinião a qualidade dos profissionais realmente piorou?
Eu acho que os novos são maravilhosos. Acho impressionante a capacidade deles de interpretação da realidade, do texto, de análise. Acho que as pessoas criticam também o fato de os novos não serem muito politizados, mas essa é uma crítica ao mundo de hoje.
Qual a sua opinião sobre a exigência do diploma de jornalismo para exercer a profissão? Há quem defenda, por exemplo, que o estudante possa cursar história e depois um ou dois anos de especialização em jornalismo, há quem ache que seria mais democrático a abolição pura e simplesmente da exigência do canudo...
Não tenho opinião não. Acho que o importante é que a boa informação chegue ao conhecimento da sociedade, não sei por que meio. Me preocupa um pouco, realmente, o mercado para a gente, jornalista. Muitas vezes acho que pode ocorrer que um médico que é uma estrela em sua área e cobra lá uma fortuna no seu consultório não precise cobrar a mesma coisa para escrever um texto para um jornal. Acho que as empresas também se aproveitam disso, têm informação de qualidade ali, e o médico, com o nome escrito no jornal, pode atrair mais clientes, mais prestígio. Não necessariamente ele vai contribuir – pensando em mercado de trabalho ele não contribui – mas a sociedade precisa da informação dele. Mas talvez o melhor instrumento para esta informação chegar ao conhecimento da sociedade seja o nosso, pois o papel do jornalista é esse: ele pega a informação do médico e traduz de maneira mais simples, objetiva. Não necessariamente você sendo a favor do diploma tem de ser contra a democracia da informação. Pode ser um instrumento dela.
Você se notabilizou pelas grandes reportagens investigativas, algumas delas transformadas em livros que alcançaram sucesso editorial, como “Rota 66” e, mais recentemente, “Abusado, o Dono do Morro Dona Marta”. A reportagem investigativa anda escassa?
Não acho que há crise não. Todos os jornais querem, há jornais que têm núcleos de investigação. Vejo nas ruas, eu dou muitas palestras, e muita gente vem falar que gostaria de seguir a área de jornalismo investigativo. Talvez haja até uma certa moda aí. Agora, se é para criticar um pouco, eu critico a forma como está se praticando o jornalismo investigativo no Brasil. Talvez pelo fato de eu ter passado um tempo fora e chegar aqui no meio de uma crise (denúncias de corrupção de integrantes do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e do Congresso, o chamado “mensalão”), eu estou sendo testemunha de muita irresponsabilidade na divulgação dessas notícias. O que estão fazendo? Estão denunciando primeiro e depois correndo atrás das provas. Depois da denúncia. E acho que tem que ser o inverso. Investiga muito, apura, tem certeza que você está envolvida, depois te procura para ver se você consegue me provar que a minha informação é mentirosa. E ela nem vai ser publicada. Você tem que ter todo o tempo do mundo – você acusado – para se defender e aí o último processo é a denúncia.
O que está sendo feito é primeiro a denúncia. Na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito do Mensalão, dos Correios e dos Bingos) vejo deputados se queixando dos entrevistados: “como você não está falando nada aqui, você está prejudicando o nosso trabalho. Como é que a nossa investigação vai andar se você não confessa, desse jeito a gente vai chegar ao final sem a prova”. Todo o tempo eles falam que não têm prova e ainda ficam cobrando do acusado, exigindo que ele confesse.
Tem que ser o inverso: trabalhe, investigue, vá atrás para acusar alguém. E não fique exigindo que o cara que é simplesmente o acusado confesse. Imagina se ele é inocente então. Está ali diante do país sendo acusado, ou tendo que se explicar. Sendo hostilizado, pelos deputados e pela imprensa também, salvo exceções. Filmado ao vivo, sem o menor critério.
Felizmente algumas denúncias estão sendo comprovadas como verdadeiras. Imagina se nada tivesse sido comprovado? Aí seria essa gente toda aí, acabada politicamente e moralmente também. Veja o filme que a gente já assistiu no passado, e que levou ao impeachment do (ex-presidente Fernando) Collor. Quantas pessoas foram punidas pela Justiça até agora? Nenhuma. Salvo o PC (Paulo César Farias, tesoureiro de Collor), que está morto. Por que não foram punidos? Porque foram espertos e escaparam da acusação ou a gente não foi eficiente na busca de provas? É uma pergunta que fica no ar.
O fato é que a Justiça não pode punir quando não há provas contundentes. Temos que questionar a qualidade da nossa denúncia. Por que julgar politicamente é fácil, não precisa de provas. Só que para a sociedade evoluir, precisa ter a prova técnica. Cadeia para quem merece cadeia, liberdade para quem merece liberdade.
No período em que esteve fora do Brasil você pôde observar como a imprensa européia trabalha. Lá os jornalistas são mais cuidadosos nas acusações?
Não sei o que nasceu primeiro, porque a sociedade é mais exigente, ela processa. E o processo é milionário, e acho legal que seja assim. Por conta disso, de questões financeiras, é que a imprensa é mais cuidadosa. Mas acho que a nossa imprensa é maravilhosa, ela tem excelente qualidade. Você pega qualquer revista brasileira, os melhores jornais, as melhores TVs, elas estão no nível de qualquer país de primeiro mundo. A nossa televisão é bem melhor que a de vários países desenvolvidos, com exceção da Inglaterra. A Inglaterra é maravilhosa, com seus documentários. Na França os documentários são maravilhosos, mas o jornalismo diário não. Eles fazem rádio com uma câmera ligada na frente deles, um blá-blá-blá sem fim. Talk show é baratíssimo, mas não é TV, podia ser rádio, com câmera ligada.
As novas mídias estão transformando todo cidadão em repórter, como no episódio recente do ataque terrorista ao metrô de Londres, quando várias das vítimas e testemunhas fotografaram o que viram com as câmeras de seus celulares e enviaram as fotos e mensagens para blogs. O resultado é que seus relatos chegaram aos leitores mundo afora muito mais rápido do que o material produzido por TVs e jornais. Nesse caso o jornalismo profissional tem que se render àquele feito, na hora do fato, por seus próprios protagonistas?
Ótimo que seja assim. E a tecnologia é um instrumento que facilita essa proximidade. Você registrar o privilégio de ter sido testemunha. Temos apenas que aprender a gerenciar isso. É direto. Não tem um mecanismo editorial entre você e o público mais, não passa por uma redação, uma discussão do que vai ser o conteúdo. Pode haver excessos, como publicar a foto da intimidade de alguém. Vamos ter que criar regras.
A internet trouxe algumas mudanças significativas para a carreira, não apenas introduzindo um novo veículo, que é o site de notícias, mas também mudando a forma como o jornalista apura os fatos. Como vê essas mudanças? Há certo risco de acomodação do profissional pela facilidade de acesso a certas informações?
Hoje não existe mais jornalismo investigativo sem esse recurso, sem essa ferramenta. Facilita a vida. Você tem acesso a todas as bibliotecas do mundo sem sair de casa, concorda? Sobre esse aspecto da acomodação, tudo pode ser visto de qualquer lado. Mas eu sou a favor da evolução, de qualquer natureza, acho um absurdo atribuir culpa ao equipamento ou à tecnologia. Depende da sua eficácia ou não, da maneira como você vai usá-lo.
Não se pode condenar esse avanço, de maneira nenhuma. Claro, sei que tem pessoas que fazem jornalismo hoje com “control C” e “control V”, acho que é legal para sua base, para sair para a rua bem preparado, até para avaliar melhor o que é novo e o que não é novo, o que já foi divulgado. É até uma questão de respeito com o seu público, você vai buscar uma informação realmente nova se você sabe o que foi divulgado antes. As pessoas criticam muito o uso da microcâmera, acham que não é ético. Mas depende do profissional que está usando, se você não é ético na vida, não vai ser ético com a microcâmera. Vai invadir lá o aposento, filmar cenas indecentes, ou vai fazer uso dela de maneira positiva. A lente da câmera de um fotógrafo de jornal tem profundidade de foco de até 300 metros – com ela você pode invadir também a privacidade de alguém. E posso fazer um uso maravilhoso dessa mesma lente. É bobagem atribuir culpa ao equipamento.
Na sua opinião, como anda a formação dos novos jornalistas? Os profissionais deveriam fazer uma pós-graduação?
Não sei se de forma acadêmica, mas se tiver tempo melhor. Você pode fazer pós em tudo, permanentemente, estudar por sua própria conta. Eu adoro estudar, sou apaixonado por texto, leio, leio, leio tudo. Meu lazer é a leitura, meu exercício permanente é a leitura. Claro, se tiver uma orientação, melhor ainda. Dar umas paradas no cotidiano é bom, só para estudar. E o trabalho de jornalismo investigativo é um exercício permanente disso, às vezes você acaba defendendo uma pequena tese para poder contar a história. A academia podia ser uma bela parceira do jornalismo, assim como o Ministério Público é, às vezes. A academia mais. Adoro os acadêmicos preocupados com a realidade, que facilitam o acesso da sociedade à informação científica.
Você defende que um jornalista busque uma especialização ou ele deve ser capaz de fazer uma matéria sobre qualquer assunto? É preciso preservar o generalista num mundo cheio de especialistas?
Quem tem que ser especialista é o especialista, se você conseguir, melhor. Mas o jornalista está ali para traduzir para o público. Não é o papel dele. Tem que ter rigor na apuração. Em vez de perguntar três vezes, pergunta 50 para o especialista. Este que trate de usar também uma linguagem mais simples, se quiser que o conhecimento dele seja absorvido pela sociedade. Se o jornalista que está ali e tem obrigação de ser bem informado não consegue entender, imagina o público. O que adianta fazer jornalismo só para os iguais? O economês para o diretor do banco, o linguajar médico para o catedrático daquela especialidade. Observo nas redações grandes que se a matéria é boa, não importa o assunto, todo mundo pára na frente da televisão para assistir. Automaticamente. As pessoas assistem se há comunicação e entendimento.
Com o passar dos anos muitas das funções dentro de uma redação se modificaram ou se aglutinaram. Um chefe de reportagem, por exemplo, é raro hoje em dia – vê-se mais um editor que acumula essa função e repórteres que têm de trazer o texto fechado e titulado, quando não fotografarem também o entrevistado. O que acha dessa tendência? Piorou a qualidade do jornalismo?
Fico observando essas mudanças, e o que mais me preocupa é a evolução das empresas donas dos meios de comunicação no Brasil, que são empresas de interesses heterogêneos, são empresas agregadas em várias áreas. Mas acho que o núcleo de comunicação delas, do jornalismo, ficou mais profissional. E acho que elas ficaram mais atentas à coisa do conteúdo editorial. Isso nos ferrou de certa maneira, porque elas interferem no conteúdo hoje.
Antigamente, era assim: quando a empresa queria influenciar negativamente, ou interferir no conteúdo, ela pegava, digamos, um político de sua simpatia, e deixava esse camarada falando, no caso da TV, ou abria espaço para divulgar as idéias dele. Hoje é na reportagem que eles fazem isso. É muito mais sutil, é na notícia. Se você destaca uma notícia mais do que outra você não pode acusar a empresa de estar sendo desonesta. Digamos, um assalto que aconteceu na avenida Paulista. Ele aconteceu mesmo.
Manda-se um monte de repórteres para cobrir o assalto, as reportagens estão muito bem-feitas, destacam de maneira brilhante todos os detalhes dessa história. Mas deixam de contar os cinco assaltos mais graves, digamos, no Rio de janeiro. É um critério que você está adotando. Com isso você muda completamente o cenário da violência numa cidade, se direciona para uma e não para outra. Se não contextualiza. Contextualizar para mim é tudo hoje. Eu posso fazer um documentário fantástico, para o país chorar, com quatro histórias dramáticas sobre crimes de morte praticados por assaltantes. É o Brasil.
Se mostrar esse documentário provavelmente muita gente vai achar que o assaltante é o inimigo público número 1 em relação à violência. Se você não contextualizar e dizer que ele é responsável apenas por 4% das mortes no Brasil, está enganando um público, está cometendo um crime jornalístico. Tinha que ter um outro documentário do lado colocando o universo das 96% das mortes que envolvem o cidadão comum.
No final, as pessoas vão ficar com outro quadro. Não vão achar que o assaltante é o pior deles. O chefe de reportagem é o executivo que manda executar aquela linha editorial, aquela receita. E antes era uma coisa mais livre, junto com o repórter. Nisso a gente perdeu valor. Antes de ir para a rua você já tem ali uma receita e é difícil sair dela. Você tem que lutar por independência, não vou nem falar de liberdade porque a liberdade é do dono do veículo. Independência é uma luta permanente.
Se você fosse montar uma redação de jornal hoje, sob sua responsabilidade, e tivesse que escolher jovens profissionais pela resposta à seguinte pergunta: por que você escolheu ser jornalista? Que profissionais escolheria?
Alguém que tenha o desejo de mudança, pois estamos num país chamado Brasil. Alguém que brigue com essa diferença, com essa desigualdade absurda, alguém que chegue indignado com a concentração de renda, que acho que é um ponto essencial. Se não tiver preocupado em inverter o processo de concentração de renda, pra mim não está “linkado” – para usar um termo da moda – com a necessidade maior do país. O resto para mim é secundário. Se fôssemos fazer uma lista, por ordem de importância, do que é associado à violência, das coisas que determinam que o país seja violento – evidentemente que é algo muito complexo –, o primeiro lugar seria da concentração de renda. As empresas no Brasil, antes de produzirem a essência da sua atividade, o seu produto, seja rádio, televisão, comunicação, produzem miséria.
Matéria produzida para o site Bradesco Universitários em 25/08/2005.