Uma das primeiras brasileiras a hastear a bandeira pelo uso de bicicletas como meio de transporte seguro nas cidades, a jornalista Renata Falzoni é ''bike-repórter'' da Rádio Eldorado e tem um programa que mistura esporte e cultura na rede de canais ESPN. Sua carreira é marcada por passagens pelos principais jornais e revistas do país, como Veja, Istoé, Nova, Cláudia, Placar, Playboy, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, entre outros. Pedalar sem roupa pelas ruas de São Paulo, posar nua para calendário e ir de Paraty a Brasília pedalando a ''magrela'' são alguns exemplos do que foi capaz de fazer para garantir os direitos dos ciclistas.
Aos 58 anos, ainda enfrenta preconceitos e resistências, mas continua firme tentando mostrar que mudar o conceito de mobilidade nas cidades é possível e necessário, para a saúde das pessoas e do planeta. Renata afirma que a nova geração, hoje com 20 e 30 anos, é a que melhor entende o seu legado e percebe a importância de trocar o carro pelo próprio corpo. Nessa entrevista, ela fala de sua carreira, da militância e das soluções possíveis para o uso da bicicleta nos centros urbanos, embasada por suas pesquisas e a experiência de quem rodou 22 países sobre uma bike.
Leia, a seguir:
Para falarmos de você, precisamos falar de cicloativismo. Como você define cicloativismo?
Renata Falzoni - Prefiro, ao invés de explicar quem é o cicloativista, explicar o tipo de pessoa que eu sou. Tenho uma atitude social que procura interferir na cidade, no urbano. Não caio nessa história de que sem o carro sou uma pessoa infeliz. Sou alguém que busca para si simplicidade de vida. Então, eu ando a pé, de bicicleta, de trem, de ônibus, de metrô e compartilho as ruas. Se eu estiver de carro (que eu também tenho), vou dividir as ruas. Se eu estiver de bicicleta, vou me comportar de tal maneira que eu exija respeito de quem está de carro, de quem é mais forte. Se eu estiver a pé, vou atravessar na faixa de pedestre e impor que os carros parem e me respeitem. Se eu estiver de carro, vou brecar para este pedestre e vou impor que o carro de trás me respeite também. Isso o pessoal confunde com cidadania, mas eu chamo de cicloativismo, porque o meu foco está em ser feliz como uma cidadã numa bicicleta. Respeitar e ser respeitada. O cicloativismo é uma atitude, que não é só a bike. Meu foco está na bicicleta, mas é muito mais do que isso.
Quando trocou seu carro pela bicicleta?
Troquei definitivamente meu carro pela bicicleta em 1974, mas só comecei a falar em transporte por bike a partir 1988. Antes disso, apenas usava termos como ''passear'', ''circular'' ou ''andar''. Era como preparar o terreno, porque, na minha opinião, isso não poderia ser dito de uma hora para outra. Nos meus textos, já vinha incorporando a bicicleta como meio de transporte. Em 1996, a proposta foi feita oficialmente, usando o planejamento urbano das vias considerando os ciclistas. Mas não era apenas eu que estava lutando pela causa. Existiam muitos outros cicloativistas ao meu lado que tiveram o mesmo destaque.
Historicamente, no Brasil em especial, os estudantes sempre foram a classe de pessoas intelectualizadas, estudando os problemas do país, que se movem de bicicleta porque ainda não estão encaixadas no mercado de trabalho, que lhes oferece o status de estar de carro. Mas essa visão está mudando. Em países onde o cara que anda de bicicleta não é estigmatizado como pobre, ele continua com sua bicicleta mesmo depois do sucesso profissional. Cada vez mais, no mundo inteiro, esse cara vai usar a bicicleta, porque esta opção está sendo considerada uma opção de gente inteligente. No Brasil, cabe aos estudantes perpetuar isso para começar a mudar. Infelizmente, ainda estamos atrasados nessa questão.
Que argumentos usaria para convencer a montar numa bicicleta quem diz não gostar de pedalar, e muito menos numa cidade grande e movimentada?
Uma pessoa que não gosta de andar de bicicleta tem geralmente dois motivos. O primeiro: ela não gosta porque nunca aprendeu, não teve pais que a incentivassem, uma ciclofaixa ou um espaço de lazer. Ou seja, é filha de uma geração sedentária, por opção ou não. Ou então, essa pessoa tem, na verdade, medo de pedalar nas ruas. Para os dois casos, eu tenho uma receita: ''Só bike salva!''. Na primeira situação, aconselho que essa pessoa respeite aqueles que querem usar suas bicicletas como meio de transporte. E, mesmo mais tarde, garanto que ela vai ter que ceder e fazer exercícios para sua saúde. Aí a bicicleta vai chegar como receita médica. No segundo caso, recomendo que se redescubra a bicicleta, use as ciclovias, os parques, para sair da estagnação e aprender a pilotar e a manejar a bicicleta. Além disso, indico a turma do Bike Anjo (www.bikeanjo.wordpress.com ), que oferece atendimento personalizado feito por um ciclista experiente, que irá acompanhar o ciclista iniciante ao seu destino durante todo o trajeto, traçado por ele mesmo considerando tempo e segurança.
Esse atendimento personalizado é um serviço pago?
O preço do serviço é um grande abraço. Essa é mais uma militância, porque um cicloativista é na verdade um ativista por um mundo melhor. Procurar os grupos de ciclistas noturnos é outra alternativa muito bacana. Ao pedalar em grupo, você aprende com os líderes como conviver em sintonia com os carros, sem atrapalhar os motoristas, aprende a ter uma postura defensiva ostensiva, aquela que marca território, que mostra ao motorista ''estou aqui''.
Um dos episódios mais marcantes da sua luta como ativista do transporte em bicicletas foi em janeiro de 1998, quando liderou a comitiva de ciclistas da ''Campanha Bicicleta Brasil, Pedalar é um Direito'', que pedalou de Paraty até Brasília para reivindicar o cumprimento do Novo Código de Trânsito Brasileiro. O que esse episódio representou para você e o que representou para o país?
Em 1997, quando o Novo Código de Trânsito foi lançado, me perguntaram o que eu achava dele. Na época era ainda imatura e saí dando opiniões sem conhecer realmente o Código. Isso pautou a mídia, que passou a publicar que os ciclistas eram contra ele. Aprendi aí a importância de assumir a responsabilidade dos próprios atos, principalmente sendo uma pessoa formadora de opinião. Quando de fato li o Código, percebi a besteira gigante que havia feito. Para reverter minha má comunicação, uma atitude irresponsável, que gerou esse processo negativo contra o Código, criei, junto com os cicloativistas da época, um grande evento, que foi essa campanha. Rapidamente, um colegiado de pessoas começou a se reunir para pedalar até Brasília com a intenção de chamar atenção para a causa. Queríamos a aplicação daquelas leis, que elas saíssem do papel. Nós saímos a público apoiando o Código.
O que houve depois disso?
De imediato, nada aconteceu. Essa militância significou para mim um ponto final, porque estava cansada de fazer e fazer e não ver nada acontecer. Tudo o que se prometia não saía do papel. A partir daí, fiquei fora do cicloativismo, mas não fora da atitude de ser uma cicloativista. A verdade é que eu não tinha consciência de que, na realidade, nós estávamos plantando uma nova geração. Só passei a perceber o resultado quando essa geração passou a me mostrar que era possível. Só voltei a atuar no cicloativismo em 2002. Nesse intervalo, pedalei por 22 países para conhecer o resto do mundo, buscar informação e trazer para cá as soluções possíveis. Então, sei que não luto por uma causa utópica, porque conheço país pobre onde se pedala e conheço países riquíssimos, com uma população com poder aquisitivo para ter os carros de última linha, onde se pedala muito mais!
A ''Pedalada Pelada", versão nacional do World Naked Bike Ride, visa a denunciar a falta de segurança dos ciclistas nas ruas das grandes cidades e pedir melhores condições para o trânsito de bicicletas, certo? Você foi pioneira nesse projeto em 2008, que teve a quarta edição em março de 2011. Primeiro, por que ''ciclistas pelados''? E, segundo, tem notado resultado em função das manifestações?
Essa manifestação aconteceu no mundo como uma espécie de consciência coletiva. A intenção é celebrar o corpo e mostrar que o obsceno não é o corpo pelado e sim o trânsito. Uma roupa não significa nada, porque, com ou sem roupa, a proteção é a mesma. Então, porque que, quando o ciclista está sem roupa, o motorista não passa por cima dele, e quando vestido ele faz o contrário? Não é para chamar a atenção com corpos sensuais, expostos pornograficamente. São corpos desprovidos de qualquer proteção, enquanto o motorista fica protegido pela máquina, vidro fumê, air bag, e também pela lei. A intenção é: ''Me veja, me perceba!''. Infelizmente, o brasileiro enxerga com outros olhos, mas em outros países, como Holanda, Inglaterra ou Dinamarca, todo mundo tira a roupa na boa, e a mensagem é passada com clareza. Aqui, ela ainda fica um pouco confusa, mas nós continuamos, porque há quem entenda. Os resultados dessas manifestações são bolhas. No dia seguinte, quando a imprensa reverbera, é possível ver as reações positivas.
Como você enxergou o incidente ocorrido em Porto Alegre (RS), em que um homem atropelou dezenas de ciclistas ao se lançar com o carro sobre uma passeata de bicicletas?
Infelizmente, a maior reação positiva que vi nos últimos tempos foi após esse atropelador. No dia seguinte, senti deliberadamente que os motoristas de São Paulo se comportavam com esse tom: ''Eu não sou igual, estou te vendo, te respeitando e não uso meu carro como uma arma'' - o que ele, inconscientemente, faz. O comportamento permitido e requerido pelas autoridades do trânsito da cidade é de fluidez dos carros. Esse tipo de comportamento faz com que seja normal o cara não parar para um pedestre, e faz com seja muito difícil o motorista respeitar o pedestre ou o ciclista, porque ele não é punido por isso. O que aconteceu em Porto Alegre foi uma reação de fúria em cima dos ciclistas, mas, na verdade, isso acontece todos os dias. Só que lá foi superlativado.
Como é andar de bike nas ruas de São Paulo?
Em São Paulo há motoristas que jogam o carro em cima de mim de propósito, por achar que eu não tenho o direito de dividir a via com ele, como se eu estivesse atrapalhando o trânsito. Se não aconteceu nada comigo é porque, antes de tudo, tenho uma atitude defensiva e imponho meu lugar, porque estou certa. Fora isso, tenho que entrar para a calçada para não me machucar várias vezes. As autoridades enxergam o desrespeito para com o pedestre ou o ciclista como uma normalidade, tanto é que eles não multam o motorista que desrespeita o pedestre ou aquele que não mantém distância de 1 metro e meio do ciclista. Esse motorista de Porto Alegre estaria solto se não fosse o vídeo, uma prova indiscutível.
Estruturar uma metrópole como São Paulo com espaço seguro para pedalar ainda é uma meta distante?
As pessoas que vão deixar o carro em casa têm que fazê-lo com satisfação, porque vão sair a pé por calçadas bem desenhadas e seguras, vão atravessar por faixas que os motoristas não vão lhes atropelar e vão chegar até os transportes públicos, que farão o mesmo trajeto que elas fariam de carro em menos tempo e com mais conforto. Por isso, além de diminuir o número de carros na cidade, é preciso ter transporte público de qualidade e vida feliz para os pedestres e ciclistas. A solução inteligente adotada por todas as cidades do mundo que buscam o tráfego de pessoas e não de máquinas é interagir, sob um único controle, todos os transportes públicos, como trem, ônibus e metrô, além da área pública. Tudo isso deve estar sob a mesma liderança.
Com isso, se redesenha o sistema, que leva o pedestre, o ciclista e o cadeirante aos terminais desses transportes. Além disso, os pedestres também podem ter acesso às bicicletas compartilhadas e podem pedalar de um ponto a outro com agilidade e segurança. Essa política pública prioriza ao cidadão o acesso ao transporte público de qualidade, que às vezes nem precisa dele, por poder se transportar por pequenas distâncias a pé ou de bike. Quando isso acontece, fica caro sair de carro. Aqui no Brasil, isso é possível sim, é só querer. Se a mudança começasse hoje, em dez anos tudo estaria mudado. Uma política pública voltada para o cidadão visa esse tipo de solução.
Levantamento recente feito pelo Metrô de São Paulo mostrou que 70% dos ciclistas da capital usam a bicicleta para ir ao trabalho e, tirando idas ao mercado e ao médico, sobram apenas 4% que a usam para lazer. O que esse resultado indica?
Indica o que já é sabido. É a massa trabalhadora que mais se transporta de bicicleta, a que está na periferia. A bike é o primeiro transporte até chegar ao transporte público. Em 2007, nunca parava em uma esquina com minha bike e via mais oito ciclistas ao meu lado. Hoje, isso é normal. Então, o número de bicicletas aumentou muito. Pelo menos 1 milhão de pessoas se transporta de bicicleta ao menos uma vez na semana na cidade. E a política pública é zero, apesar disso.
A mesma pesquisa revela que nove em 10 ciclistas paulistanos são homens. Por que acredita que exista essa gigantesca diferença entre os sexos adeptos da ''magrela''?
É verdade. E o engraçado é que a bicicleta é uma solução mais efetiva para a mulher, porque geralmente o trajeto de um homem se limita entre A e B (casa e trabalho). Já a mulher segue inúmeros trajetos num mesmo dia (trabalho, escola do filho, casa, compras...). Na Europa, existe uma quantidade absurda de mulheres pedalando e aqui não. Isso acontece justamente em função da falta segurança, porque o trânsito da cidade grande exige um pouco mais de agressividade do ciclista. A mulher tem uma natureza de preservação muito mais forte. O número de mulheres pedalando nas ruas é o primeiro termômetro para saber se aquela via é mais segura. Por incrível que pareça, a cidade de São Paulo é a melhor para se pedalar do mundo porque aqui existe um berço de pessoas que pedalam sem o apoio das autoridades. E, felizmente, a esmagadora maioria dos motoristas nos respeita. É uma minoria que não é punida pelo CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) que faz do trânsito dessa cidade um caos.
Nas suas andanças pelo país, onde nota que a bicicleta é um meio de transporte altamente utilizado? E o contrário?
Daria destaque à cidade de Santos, que tem 180 km de ciclovia. Entretanto, ela é uma das piores cidades do Brasil para se pedalar, porque o ciclista, que é um trabalhador, é muito desrespeitado pelos motoristas. Inconscientemente, o motorista se sente superior simplesmente por estar dentro de um carro, que lhe dá a liberdade irreal de poder passar por cima do ciclista. Em Santos, apesar de existirem muitos ciclistas, se vê muito isso, infelizmente. A ciclovia segregada - que é ótima - é mal interpretada pelo motorista, que pensa que só porque ela existe o ciclista só deveria circular por ela. Mas acontece que a ciclovia não existe em todas as vias da cidade! Não importa a quantidade de ciclovias no mundo. Todo metro quadrado de via pública é uma ciclovia, é uma ''gentevia'', é um ''cidadãovia''. O contrário? Não existe nenhuma cidade do Brasil em que não se pedala.
Matéria produzida para o site Bradesco Universitarios em 04/04/2011