Integrante da chamada Vanguarda Paulista, e conhecido nacionalmente nos anos 1980 por causa do sucesso de ''Clara Crocodilo'' - obra dodecafônica que se tornaria referência de todo o seu trabalho - Arrigo Barnabé tem atualmente um programa de rádio na Cultura FM de São Paulo, o ''Supertônica''. São 31 anos de carreira, vários discos gravados e muitas trilhas sonoras para o cinema. Um trabalho elogiadíssimo pela crítica, mas que nunca teve espaço na mídia, como ele lembra nessa entrevista feita com exclusividade para o site Bradesco Universitários. A dificuldade de atingir o grande público levou-o a pensar em deixar a profissão e sair do país, admite. Mas não só não seguiu com essa ideia, como nunca parou de compor. Está preparando repertório novo na área de música popular, depois de 10 anos envolvido com música erudita, e cantando Lupicínio Rodrigues.
Leia a entrevista, a seguir:
A música faz parte de sua vida desde muito cedo, certo? Ainda estudante, anos antes de lançar seu primeiro CD, participou do Festival Universitário da TV Cultura (1979). Até que ponto a fase universitária pode ser fundamental na vida de uma pessoa? O que essa fase representou na sua vida?
Arrigo Barnabé - A universidade foi importante pelos contatos. Todo o pessoal do ''Premeditando o Breque'' e do ''Rumo'', por exemplo, estavam lá, e eu convivia com eles no departamento de música. Mas, na verdade, eu abandonei o curso de música, em composição, na USP (Universidade de São Paulo), porque me senti perseguido pelos professores. Na época, tinha 29 anos. Anteriormente, já havia feito arquitetura na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), mas larguei para fazer música. Em maio de 1979, ganhei o prêmio de melhor composição no Festival da TV Cultura. Aí, passei a ser um cara mais conhecido. Mas foi no final desse mesmo ano que, na verdade, fui reconhecido, por ter ganhado o prêmio de melhor arranjo no Festival da TV Tupi com a música ''Sabor de Veneno''. O canal era em rede nacional, ao contrário da TV Cultura, que era só em São Paulo. Mas, graças ao Festival da TV Cultura, pude participar do da TV Tupi. Depois, também participei da mostra paralela de Jazz de São Paulo, que foi marcante. São 31 anos de carreira.
O que te fez ser um músico tão peculiar capaz de chamar tanto a atenção?
Minha sorte foi que consegui colocar minhas músicas nos festivais, e elas eram uma ruptura muito grande com o que estava sendo apresentado na época, tinham uma carga de novidade enorme, e uma parte da audiência adorou isso. Tudo aconteceu por causa do Festival da Cultura, que não era tão conservador quanto o da Tupi - o Tom Zé era um dos jurados. Se o da Tupi tivesse vindo antes, eu não teria participado e tido a mesma oportunidade. Era algo muito urbano, ligado ao cotidiano da grande cidade. Era dissonante e não era água com açúcar. Era quase agressivo. Tinha um ponto de contato rítmico com o rock, apesar de não ser rock.
O que considera fundamental para um músico seguir carreira nos dias de hoje?
A música tem várias áreas, como compositores, instrumentistas, cantores etc. Se for para entrar em composição como eu, aconselho analisar muito bem se é isso mesmo que se quer. Se não houver outra saída, aí tudo bem. Se não for inevitável, faça outra coisa, porque é uma área extremamente difícil, é horrível, a necessidade deve ser brutal, porque a pessoa tem que ter uma vontade, uma paciência e uma dedicação muito grandes. Já para um instrumentista, percebo que o espaço tem sido cada vez maior, as possibilidades são diversas, principalmente na área erudita. Mas para ser um bom instrumentista é preciso estudar, assistir a muitos concertos. É como um atleta, que tem que abrir mão de muitas coisas para ser o melhor naquilo que faz. E compensa, inclusive porque os salários são bem razoáveis para bons instrumentistas no mercado. Vale a pena investir nisso. Quem tem necessidade de estar numa área artística, seja ela qual for, tem que correr atrás disso, porque do contrário vai viver eternamente carregando uma frustração. Mas se for para fazer só porque é bonito, não faça. Porque não vai dar certo e será apenas perda de tempo.
Quais são suas referências e influências musicais?
Quando comecei a compor, em 1972, ouvia muito (Johann Sebastian) Bach e (Igor Fiodorvitch) Stravinsky. Foram as inspirações para mim e para o Mário Lúcio Cortes compormos a parte musical de ''Clara Crocodilo''. O primeiro módulo seguia o ritmo, a linha de Bach. Fomos criando uma série de módulos, e era preciso que nós dois tocássemos no piano, porque somente duas mãos não eram suficientes. Até aí, a letra não existia. Apesar de ser algo muito técnico de se explicar, comecei a pensar numa letra, e acabou nascendo uma narração, que foi uma coisa nova, e pedia uma nova atenção do ouvinte. A música ''Clara Crocodilo'' foi sendo feita aos poucos. Fizemos em janeiro e julho de 1972, quando eu e o Mário passamos as férias em Londrina.
''Clara Crocodilo'' (1980), além de ser um de seus grandes sucessos, é o título de seu primeiro disco. Por que acha que depois de tanto tempo, tantos prêmios, tantas composições e sucessos ela ainda continua sendo uma referência fortíssima de seu trabalho como músico?
O locutor, esse personagem que narra a aproximação do monstro, que é o Clara Crocodilo, mais a banda, que carrega a história junto, são muito intensos, prendem muito e tornam aquilo muito pessoal, porque parece que o monstro está na porta de seu quarto realmente - a música fala diretamente com quem a ouve. Isso não é comum. E musicalmente ela é muito marcante, apesar de não ser uma composição tão complicada (são apenas dois refrões). E além de tudo, ela tem um lado bem rock. Ah! E ainda tem o nome, Clara Crocodilo, que é cheio de aliteração.
Além de ''Clara Crocodilo'', quais são os seus trabalhos mais marcantes?
''Diversões eletrônicas'', do Festival da Cultura, que teve um impacto grande; ''Sabor do veneno''; ''Tubarões voadores'', que é na verdade uma história em quadrinhos que eu musiquei; ''Kid supérfluo''; ''Neide manicure pedicure''; ''Acapulco drive-in'' (as duas últimas são letras do meu irmão); e tem as mais melódicas, que as pessoas também curtem, como ''Cidade oculta''.
Suas composições, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira (Art Editora e PubliFolha) passam pelo dodecafonismo e pela atonalidade, sempre na fronteira entre o erudito contemporâneo e o popular. Você concorda com essa avaliação? Como você classifica sua música?
Isso tem a ver comigo, sim. Mas minha música tem vários momentos, e a parte rítmica das minhas composições é muito forte, muito marcante. Eu sempre penso para compor, eu escolho as coisas. Não tenho como classificar exatamente minha música, mas posso dizer que tenho originalidade rítmica e melódica. A originalidade é uma preocupação minha, por isso penso para compor. Procuro até encontrar algo que eu sinta que é fresco, novo. É uma fonte de angústias (risos). Porque essa obsessão com a originalidade não me permite fazer nada que seja igual ao que eu já tenha feito.
Você passou por inúmeras fases do cenário musical brasileiro e sempre se manteve. A que atribui essa ''habilidade''? Em algum momento pensou em desistir? Por quê?
Acho que nunca entrei propriamente no mercado. Nunca vivi de direitos autorais, vendas de CDs e shows. Tenho projetos paralelos, dou aula, tenho um programa de rádio. Claro que estive sempre dentro do universo musical, mas sempre tenho que correr atrás de alguma coisa. Nunca tive espaço na mídia, nesse mercado. O rádio e a TV aberta sempre fizeram uma pressão muito grande para que certos estilos não fizessem parte desse universo. Não sei dizer por que exatamente, mas sei que não está dentro do que eles querem. Alguns de nós não tivemos essa oportunidade, de atingir um grande público. Pensei em mudar de profissão, sair do país - já pensei em tudo. Mas, nos últimos 11 anos, posso dizer que vivo muito bem, melhor do que na época em que meu nome saía sempre nos jornais e que todo mundo sabia dos meus trabalhos. O desenvolvimento na área dos Sescs e outros espaços privados começaram a oferecer oportunidades para a divulgação de trabalhos que não fizessem parte dessa coisa televisiva. Tive inúmeros projetos aprovados por esses espaços. Fiz shows, óperas, gravei CD, compus novos trabalhos. E foram trabalhos relativamente bem pagos. Naquela época, eu dependia da bilheteria para ganhar alguma coisa, que dependia da divulgação, e que, muitas vezes, não acontecia.
Fale-nos um pouco sobre o ''Supertônica'', seu programa de rádio na Cultura FM, aos domingos, 21h30. Como é a participação do público?
Eu adoro esse programa! Ele é muito legal! Está há quatro anos no ar. A ideia é minha, mas o produtor, o Júlio de Paula, é um cara especial, que sabe dar a forma certa. O programa não existiria se não fosse a participação das pessoas. Eu vou às ruas entrevistá-las e saber o que elas acham de determinada música que eu coloco para escutarem - sempre músicas estranhas, na maioria eruditas (tem até do século 11). São grupos de pessoas, como motoqueiros, camelôs, estudantes, engraxates, jogadores de xadrez... que também falam sobre seus gostos musicais. Além disso, sempre tem um entrevistado de alguma área específica, que pode ser cinema, ciência, história, música... Conversamos sobre sua área de atuação, mas também sobre seus gostos musicais. Às vezes, recebo sugestões por e-mail sobre os grupos que as pessoas gostariam que eu fosse visitar, apesar de serem poucos. É um programa muitas vezes emocionante e comovente, e, sem dúvida, poderia ser também um programa de televisão. Na internet, dá para ouvir pelo Radar Cultura (www.radarcultura.com.br).
Os 30 anos do movimento do (teatro) Lira Paulistana foram lembrados no final do ano passado com uma série de apresentações que contaram com a sua participação. O que esse resgate cultural representa para a população?
Na época, foi uma renovação. Era um espaço que apareceu para divulgar teatro, cinema e música (no bairro de Pinheiros, em São Paulo), que acabou tendo maior destaque. Isso porque o cenário da música ''underground'' estava sendo mais reconhecido. Eu mesmo havia acabado de lançar ''Clara Crocodilo'', que era bem comentado. O Lira comprava muito nosso trabalho e revendia para o Brasil todo. Todo mundo começou a ficar conhecido por causa do Lira, que tinha suas sessões lotadas com artistas como Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Língua de Trapo, Vânia Bastos... Esse momento causou um impacto na cultura brasileira, virou referência. É natural que 30 anos depois as pessoas lembrem disso e queiram reiterar essa importância.
Lugares frequentados por jovens em São Paulo, como a Praça Benedito Calixto, foram palco das apresentações da geração do Lira Paulistana. Como foi a receptividade desses jovens?
São os filhos da geração que presenciou o Lira. Mas as pessoas ainda se mostraram desbundadas com aquilo. É um movimento que tem uma imensa capacidade de comunicação, mas que não está na mídia por uma espécie de boicote, porque talvez não estivéssemos dentro dos padrões que eles julgam vendáveis. E não tínhamos dinheiro para poder pagar e pôr no ar. Mas a música tem um poder de comunicação incrível. Os movimentos culturais, como a Virada Cultural, estão cheios de jovens, só a garotada. Claro que não foi o mesmo Lira Paulistana de 30 anos atrás, mesmo porque não houve divulgação e organização suficientes. Acho que poderia ter sido um pouco mais planejado.
Como você enxerga a cena musical atualmente no Brasil e no mundo? A internet e a tecnologia vieram para colaborar? Como é possível saber o que ouvir com o bombardeio de opções e informações?
As pessoas têm de começar ouvindo Bach, que isso as forma auditivamente. Quando se conhece bem Bach, é possível ouvir o que há de bom tanto na música erudita, quanto popular ou folclórica. Isso eu aconselho para qualquer pessoa, é algo muito simples, básico, uma ferramenta que a ajuda a treinar e a selecionar o que há de bom. Uma pessoa que é bombardeada por informações, mas que conhece Bach, usa isso como referência. Mas acho que a internet é muito positiva, uma maravilha. Que pena que não tenha aparecido antes. Ela democratizou um monte de coisas. Quem quiser ouvir Bach depois de ler a entrevista, pode fazer isso exatamente agora, por exemplo.
Você utiliza as ferramentas oferecidas pela internet como as redes sociais Twitter, Facebook, MySpace etc.? Elas são importantes para a carreira de um músico hoje?
Eu tenho o MySpace, e acesso bastante. Entro em contato com muita gente e ouço muitas coisas novas. É impressionante, porque agora, por exemplo, eu tenho mais acesso nos Estados Unidos do que aqui no Brasil. Isso não seria possível sem internet. Além disso, consigo saber quais as minhas músicas que mais interessam - ele também serve como radar. Ainda quero fazer um Facebook...
E seus projetos futuros, quais são?
Nunca paro de compor. Estou preparando um repertório novo, voltando a trabalhar na área popular (porque de 2000 para cá fiquei na área erudita). Também estou trabalhando como cantor, coisa que nunca fiz antes. Mas sempre gostei de interpretar. Estou cantando Lupicínio Rodrigues - são seis músicas de um trabalho chamado ''Caixa de ódio'', que vou lançar em DVD, porque é um trabalho muito visual. Estou fazendo shows todos os domingos na Casa de Francisca, às 21h30, em São Paulo, que vai rolar por um bom tempo, porque a casa é pequena e sempre tem fila. E, no momento, está sendo lançado um outro DVD e Blue-Ray, com uma ''big band'', a Orquestra à base de Sopro de Curitiba, que apresenta uma peça de composições minhas, chamada ''Metamorfose''. Ela se baseia numa crítica social às lambisgoias, mulheres que nunca estão satisfeitas com a própria aparência e que, por isso, fazem um pacto com o diabo sem ao mesmo saber. Nesse mesmo DVD, a ''big band'' ainda apresenta o ''Clara Crocodilo''.
Matéria produzida para o site Bradesco Universitarios em 04/03/2010