Pôr em prática uma política de proteção social voltada para populações que vivem nas ruas é um dos maiores desafios das prefeituras das grandes cidades brasileiras. Em parte, as dificuldades se devem à inexistência de dados confiáveis a respeito dessas populações, que não são incluídas nos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em São Paulo, a pedido da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social do município (SMADS), a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), vinculada à Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), vem realizando pesquisas, com base em metodologia especialmente desenvolvida para obter informações consistentes sobre pessoas em situação de rua.
Desde 2000, foram realizadas quatro pesquisas para levantar dados quantitativos, perfil e condições de vida e de sustento dessas pessoas. A última pesquisa, cujos resultados foram divulgados em setembro de 2007, teve como foco as crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo.
Foram recenseados 1842 crianças e adolescentes em 538 pontos localizados em 27 das 31 subprefeituras da capital, em um levantamento considerado “inédito, especialmente em função da profundidade das informações obtidas” pelo secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, Floriano Pesaro.
Entre os dados obtidos estão, por exemplo, que 58,4% das crianças e adolescentes encontrados pelos pesquisadores nas ruas da cidade trabalhavam naquele momento com venda de produtos ou prestação de serviços, 64,9% atuando no centro expandido (especialmente na região da subprefeitura da Sé) e 35,1% em áreas mais periféricas.
Para a coordenadora da pesquisa, Silvia Maria Schor, pesquisadora da Fipe e professora da FEA-USP, chamou particularmente atenção um dado alarmante: o de que 15,7% das crianças encontradas nas ruas têm até seis anos de idade. A maioria, 54,7%, tem entre 12 e 17 anos e uma parcela significativa, 28,6%, entre 7 e 11 anos.
Em média, as crianças estão nas ruas há cerca de três anos e meio e 82,6% permanecem nas vias e locais públicos, seja brincando ou trabalhando, pelo menos cinco dias da semana, sendo que 66,9% também à noite.
“Nós nos surpreendemos com esses dados, mesmo as que têm casa vão às ruas praticamente todos os dias. A exposição que essas crianças têm às ruas é mais forte do que imaginávamos entre as que não são moradores de rua”, diz a professora.
Outro resultado que chamou muito a atenção foi o número alto de crianças e adolescentes que vão para casa todos os dias: 49,6%. “Constatamos que isso é um processo, um trajeto. Elas saem aos poucos da família, vão rompendo os laços e passam a morar na rua”, diz Silvia.
Os pesquisadores levantaram ainda que 11,9% vão para casa uma vez por semana, 15,4% vão menos de uma vez por semana e 23,2% não voltam nunca. Há ainda um número significativo (33,6%) de crianças que vêm de fora da capital, principalmente de municípios da região metropolitana.
Entre as que foram ouvidas na etapa da pesquisa amostral, de acordo com a coordenadora, apenas 34,3% disseram que estão na escola. Outro dado a ser destacado foi o índice significativo de 52,6% de crianças e adolescentes que já freqüentaram algum tipo de programa ou serviço da prefeitura, como abrigos e Centros de Referência da Criança e do Adolescente (Crecas).
O levantamento também deixou evidente, ressalta a coordenadora, a situação de exploração do trabalho infantil: dentre as crianças com menos de sete anos que estavam trabalhando, 36,9% vendiam produtos e possivelmente eram usadas para facilitar o comércio para adultos.
“Quanto maior a faixa etária, mais elas ficam com o dinheiro para si”, diz ela. No geral, quase a metade (45,6%) utiliza para seu próprio consumo tudo o que consegue ganhar com as atividades na rua.
Metodologia
A pesquisa feita pela Fipe, batizada de “Censo das crianças em situação de rua e trabalho infantil na cidade de São Paulo”, contou com 200 pesquisadores e foi desenvolvida em três etapas, ao longo de seis meses de trabalho.
De acordo com Silvia Schor, a primeira etapa envolveu o mapeamento da malha urbana da cidade de São Paulo com o objetivo de delimitar as áreas onde se encontram as crianças. Para traçar este quadro de referência foram utilizadas informações obtidas de fontes variadas, como conselhos tutelares, organizações não-governamentais e a própria SMADS.
A distribuição espacial dos locais em que as crianças e adolescentes permanecem nas ruas foi mapeada e identificada uma forte concentração em seis subprefeituras: Sé, Pinheiros, Santo Amaro, Vila Mariana, Lapa e Mooca. “A escolha dessas áreas não é aleatória, há claramente uma estratégia deliberada, pois são locais em situação privilegiada para a ação dessas crianças, onde há comércio, bares e boas condições viárias”, explica Silvia.
A segunda etapa foi a saída a campo para o recenseamento. Para evitar o risco de dupla contagem, os pesquisadores foram às ruas de todas essas áreas da cidade em um único dia (18 de junho), uma sexta-feira de bom tempo, no horário entre 16h e 20h – dia da semana e período de “pico” das atividades das crianças nas ruas, segundo as informações obtidas.
Enfim, a terceira etapa foi a da pesquisa amostral, realizada de 14 a 21 de agosto, e para a qual foram escolhidas as regiões das subprefeituras da Sé e de Pinheiros. Na Sé porque lá se encontra a maior concentração de crianças que moram efetivamente nas ruas e em Pinheiros por representar o maior contingente em que trabalho e a volta para a casa são situações mais presentes.
“Na terceira etapa fomos tentar descobrir quem são essas crianças”, diz Silvia. Outros dados levantados, além dos já expostos, dizem respeito, por exemplo, à composição familiar, meios de transporte utilizados, principais ações (38% disseram vender produtos, 49,6% disseram pedir esmolas – sendo esta a sua única atividade ou não), e à sociabilidade nas ruas. Neste quesito, a grande maioria, 76%, permanece na rua sem a presença de adultos.
“A pesquisa mostrou que as crianças usam estratégias diversificadas de geração de renda, aprendidas na rua, e que quanto mais expostas ficam a essa situação, mais difícil se torna voltar para casa”, conclui a coordenadora
Matéria produzida para o site da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe)em 18 de setembro de 2007.