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O mundo inovador de Guimarães Rosa
 
O Brasil lembra os 100 anos de nascimento de um dos seus maiores escritores. Especialista da Unicamp fala sobre a genialidade do autor e aconselha: 'Guimarães Rosa é para se ler sem medo, desarmado'.
 
22 de agosto de 2008
por Maria Clara Pitol
 

O ano de 2008 trouxe grandes comemorações para a literatura brasileira. Dois importantes centenários relacionados aos maiores escritores da história do país estão sendo celebrados: o de morte de Machado de Assis e o de nascimento de João Guimarães Rosa.

Ambos são considerados os grandes gênios de nossa literatura e, embora nos tenham deixado há 100 e 40 anos, respectivamente, o tempo parece não ter passado para as vastas obras dos dois célebres autores, que continuam atuais e cada vez mais lidas.

A importância de Guimarães Rosa está especialmente em sua criatividade no trato da linguagem, mas também em relação a temas e abordagens.

“Guimarães Rosa foi o autor brasileiro cuja obra revolucionou o uso da linguagem ‘desautomatizada’, utilizando com liberdade, mas sempre dentro dos limites da língua, neologismos, arcaísmos, mudanças de posição dos termos da frase, mantendo uma dicção poética de beleza e pluralidade de sentidos”, afirma Suzi Frankl Sperber, professora titular de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Suzi é também coordenadora do Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, da mesma instituição, e autora de livros como “Guimarães Rosa: Signo e Sentimento”.

O autor tem em toda sua obra características marcantes como os neologismos e a ordem indireta de escrita, que acabam por especificar e dar as suas criações uma leitura única, explica.

“A principal característica da obra de Guimarães Rosa é a positividade. Ela acolhe os seres humanos de todos os tipos – sobretudo os mais desvalidos – atribuindo-lhes um valor e qualidades que outras obras não discernem”, aponta a especialista.

Segundo a professora, essa mescla de diferentes tipos de personagens é alcançada pela forma como o escritor insere em sua obra as experiências e os conhecimentos vividos por ele: “Guimarães Rosa o consegue pela maneira como aproveitou elementos das religiões, espiritualidades, filosofias estudadas, apreendidas, absorvidas, elaboradas. Ele as mesclou, dando-lhe coesão a partir de uma ética só, comum, sua, uma ética da liberdade e da alegria”, conclui.

No Brasil, existe um consenso de que a obra de Guimarães Rosa é de difícil leitura, isso porque a escrita do autor não segue a ordem e a forma com as quais os leitores estão acostumados.

“A maior dificuldade de leitura da obra de Guimarães Rosa reside na pontuação e na linguagem. Mas se esta mesma obra for lida em voz alta, sendo obedecida a pausa da pontuação, os textos passam a ser perfeitamente compreensíveis e ouvimos a dicção brasileira, do norte de Minas Gerais e sul da Bahia”, esclarece a professora Suzi Frankl Sperber.

A especialista alerta o leitor para o verdadeiro perfil dos personagens de Rosa. “Ainda assim, ao lermos Guimarães Rosa em voz alta, devemos ao mesmo tempo cuidar de não ler ‘acaipiradamente’. As personagens de Guimarães Rosa não são caipiras. São interioranos inovadores. Encaixar as personagens em molduras as empobrece”.

Em função da grande importância do escritor para a literatura brasileira, suas obras estão anualmente nas listas de leituras dos principais vestibulares do país e muitas vezes são solicitadas até mesmo dentro das universidades. Porém, muitos jovens se questionam se aquela é a hora certa para a leitura de Guimarães Rosa.

“A cada momento da vida, a leitura da obra de Guimarães Rosa será diferente. Cada idade é boa para se ler a obra de Guimarães Rosa”, garante Suzi.

Para a professora, a leitura desse célebre autor exige apenas o desarmamento do leitor: “Aquilo que a leitura roseana requer é a derrota da inteligência. Parecerá um absurdo. É que a obra roseana ao mesmo tempo que aprofunda questões espirituais, filosóficas, éticas, psíquicas, pede que se entre na leitura desarmado”.

Ela completa o raciocínio: “Pouco a pouco, a obra vai tomando conta do leitor, até envolvê-lo, encantá-lo, ilustrá-lo”.

A especialista dá, ainda, algumas dicas para quem decidir encarar a leitura das obras de Guimarães Rosa. A primeira é ler sem medo: “Comece a ler sem pretender entender tudo”. Depois, o leitor deve aproveitar para ler pelo simples prazer da leitura. “Para curtir a leitura, os sons, os tropeços”.

Por fim, vale lembrar que, para chegar à compreensão da obra, são necessários dedicação e esforço. “É preciso um investimento de tempo: ler diversas páginas sem entender, perdido ao sabor dos sons, das imagens, das cenas”. A professora finaliza com sua própria experiência: “De repente você se emocionará e não conseguirá mais parar de ler”.

A vida de Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa nasceu na cidade mineira de Cordisburgo a 27 de junho de 1908. Primogênito dos seis filhos de Francisca e de Florduardo Pinto Rosa, Joãzito, como era chamado, logo cedo já se tornara poliglota. Anos mais tarde, cursou medicina em Belo Horizonte, quando proferiu a famosa frase: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Por muitos anos exerceu a profissão de médico. Em outro período, foi diplomata, tanto na Europa como na América Latina.

Sua estréia nas letras ocorreu em 1929, ainda quando era estudante. Seus quatro primeiros contos foram premiados e publicados pela revista O Cruzeiro. A literatura o acompanhou desde então, sendo suas obras um misto de ficção e biografia.

Em 1963, em sua segunda candidatura à Academia Brasileira de Letras, foi eleito por unanimidade. Porém, adiou a cerimônia de posse, pois afirmava ter medo de morrer no dia do evento. Só foi assumir em 1967 e, três dias depois, em 19 de novembro, faleceu no Rio de Janeiro.

“Do ponto de vista do sentido da vida humana, Guimarães Rosa investiu na busca do conhecimento mais profundo, da purificação da alma, e esta depende tanto da travessia, como de abdicar da arrogância”, encerra Suzi Frankl Sperber.

Matéria produzida para o site Bradesco Universitários em julho de 2008.

 
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